quinta-feira, 8 de março de 2012

A moça que conversa com Deus

Para a minha amiga Stéphanie Pascoal, por ocasião de seu aniversário.

Como se só o coração fosse a fonte do dia, ela faz de sua rotina a sua religião. Há cuidado e há carinho em cada gesto seu enquanto toma o café. Há também uma hora na manhã que é só para orações, sua conversa com Deus. Deve haver tanta candura nesse colóquio matinal, que o próprio Deus só começa Seu dia depois de falar com ela. E Ele está presente em tudo o que ela faz. Ele está em seus pensamentos mesmo quando ela esquece que existe.
Ela tem um pouco de Wendy, a amiga de Peter Pan. É a criança mãe de outras crianças. É o amor em forma de cuidado. É também a beleza em forma de bondade. Às vezes, penso que ela é uma princesa extraviada de um livro de conto de fadas. Alguém abriu o livro e ela caiu da página. Então, uma aura luminosa de minúsculas estrelinhas a materializou no mundo real. Ela toma conta de cada um de seus amigos, estejam eles próximos ou distantes. Sua alma está sempre conectada com todos os que ela ama, e eles podem sentir isso durante as vinte e quatro horas do dia e durante os sete dias da semana.
Eu sei que ela também fica triste de vez em quando. Às vezes, ela mergulha nas águas da melancolia. Mas lá ela sabe nadar. Sabe permanecer sem afundar. Ela não tem nada de pedra, nem o peso nem a dureza. Seu sorriso lembra as asas de um anjo branco, quase transparente. Ela é feita de luz. Sabe perdoar e se perdoar. Ainda que, por causa do imenso amor que sente no peito, se prenda para sempre, por um fio de balão, à imagem daquele que partiu de sua vida. Eu não sei se ela chamaria de amor ou de compaixão essa dor que ela sente pela pessoa que se exila, sempre procurando terra, já que nela terra não há. Nela há o céu. E é isso que alguns não entendem.

Belo Horizonte, 08 de março de 2012.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Murilex Fetuccine

Para alguém especial.

Meu coração é o espelho de tua imagem enquadrada. Não posso falar de ti sem lembrar-me de tua beleza. Tua beleza toda dentro da pequena tela. Eu te olho, baby, como se te beijasse. Ver-te é como ler-te os poros com a minha pele. É como morder-te com os olhos. Quase como a vertigem de certo poeta, que queria ser toda a gente e toda a parte e sentir tudo de todas as formas. Mas tudo é mais leve que o ar... E eu mergulho no mundo claro do teu sorriso como se reencontrasse minha infância perdida, minha infância perdida au fond d’ une poche oubliée...

Tudo é doce como a sonoridade do teu segundo nome. Esse nome que eu pronuncio como se fosses uma bala e eu te lambesse. Porque conhecer-te é saber-te o gosto. Descobrir-te é deixar que entres pelos meus olhos, janelas de mim. Eu te sinto como se te desvendasse. Mas, como num jogo tácito, amar é estar preso por vontade, o vencedor servindo ao vencido e vice-versa várias vezes...

Eu te amo, baby, como se sentisse cheiro de chuva, com muita vontade de ser gota e água e rio corrente... E ter o mar como única certeza é não saber onde se vai parar, nem quando... Eu te quero como se comesse uma fruta. Como se eu fosse toda dentes e língua. Eu quero beber tua alegria simples como se bebe um vinho.

Sei que a vida não é fácil, meu menino. Há muita coisa a ocupar-te a mente. Há muita luta para venceres. Como a minha aqui: uma batalha por dia e pouco tempo para sonhar. Ou, ainda que tenhamos sonho, às vezes nos esquecemos de brincar e dançar dentro dele. Porque os dias são curtos e as noites passam como promessas de felicidade que se adiam e se acumulam. Porque a felicidade é a única dívida isenta de juros.

Mas, hoje, que é o teu dia, todos os meus pensamentos são para ti. Desejo-te toda a sorte e “tudo de bem”...

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

La femme

Para minha amiga Val Natasha


Ela cuida de seu lar como se fosse um templo. Ela própria é um lar ou talvez um salão com luzes sempre acesas e portas sempre abertas para quem quiser dançar e sorrir e cantar. Com suas saias enormes, fartas, ela rege um mundo de sonhos, de alegrias nem sempre comedidas, mas sempre verdadeiras, e idéias maquiavélicas sobre como cultivar uma horta dentro do apartamento ou sobre como conquistar uma metrópole dura e fria com curvas generosas e um sorriso de quem sabe de que é feita a felicidade. Todos os dias, empunhando pincéis, ela inventa o mundo e fala para ele frases politizadas de quem pretende estancar a dor dos oprimidos. Quando ela anda, em casa ou na rua, vai estendendo seus domínios por cada espaço em que pisa com suas sapatilhas de riponga. Os que ousam resistir a esse domínio não escapam, porém, ao seu olhar doce, negro e direto. Olhar que se torna ainda mais irresistível quando é quase interrompido por um leve piscar o qual faz pensar que imediatamente ela virará as costas e não se interessará mais pela vítima. Mas ela persiste... E assim não há pedra, não há ponta de cigarro na sarjeta, nem planta, nem senhora viúva que zanze na feira na quinta ao meio-dia, nem menino, nem moça, nem velho ou playboy que possam escapar ao seu charme, que, não obstante tudo o que aqui foi descrito sobre ela, é um charme de loira. Assim, portanto, se faz a ambigüidade que constitui essa mulher: seu cabelo loiro, escovado, contrastando com sua dança milenar de Grande Mãe pagã. Dentro de um apartamento ou de um ônibus não é possível conter todo o mundo que ela carrega no olhar matreiro ou nos dentes, que jamais deixaram de ser os de uma criança travessa. Em si ela carrega todos os tempos do mundo. As memórias de todas as mulheres que já viveram e viverão estão no peito dela. Mas ela não se importa com isso. Finge não saber, finge não lembrar. Porque somente esquecendo ela poderá fazer uma salada enquanto escuta música popular brasileira pela rádio. Só assim, ela poderá esperar a cada dia a volta do marido, que partiu há semanas para um trabalho distante. Como se ambos fossem os únicos seres humanos a habitar o mundo. Como se aquele lar, aquele mundo, aquele templo, aquele corpo que mal se contém em saias longas e meias de inverno, não pudessem ser preenchidos senão pela seiva do amor desse homem que sempre volta alegre e sedento, mal acreditando que é dono de tanta felicidade.

02/08/2008

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Tango

Para uma grande amiga
que faz de sua vida uma linda história de amor.


Eu já havia aprendido a arte da guerra. Eu já sabia lidar com a dor. Eu já sabia trilhar o caminho da alegria. Eu já havia entendido que a vida é este fluir incessante que pulsa aqui dentro de mim e que move tudo. Eu já tinha o dom e a arte de salvar almas perdidas, como quem faz vicejar de um monturo um inesperado canteiro de flores. Eu não tinha mais pudor em reconhecer minha beleza e em expô-la nas ruas ou dentro de casa. Eu já sabia dançar e rodopiar ao som dos pássaros, sob o sol da manhã. Tudo isso eu já sabia quando te encontrei. E quando te vi tão perto, eu quis, considerando a acuidade do momento, deixar em ti as minhas marcas. Mas tu foste, aos poucos, revelando teu próprio arsenal. Então, eu vi que dessa batalha eu também não sairia incólume.

Foi no meu território que nos encontramos dessa vez. Traduzir-me foi para ti assunto de primeira ordem, tão grave e importante quanto aprender a desbravar a metrópole labiríntica em que eu te recebi. Para isso, não te custou ler livros de psicanálise e nem estudar a língua do meu país, numa preparação de quem pretende desvendar códigos de guerra. E, assim, foste penetrando meu mundo de dimensões continentais, costa e selva demarcando com tuas bandeiras...

Eu guardava para ti um sertão. Rios perdidos dentro de matas inóspitas com que eu queria burlar a segurança de teus cálculos precisos. Foi só com belezas que eu quis te seduzir. Em recompensa à tua bravura nos dias em que enfrentaste minha cidade fria de pedra, dei-te o langor de Copacabana e um mar de fantasias. Mas tu, meu lindo anjo estrangeiro, deste ao meu Carnaval a técnica e o rigor de um tango. E eu, que pensava saber tudo o que precisava para viver e ser feliz; eu vi que agora tinha de aprender o ritmo do teu passo.

Tu e eu: ambos versados em matéria de liberdade... Somente um tango poderia nos enlaçar sem deixar que perdêssemos na dança nossa altivez e dignidade. Olhos nos olhos: um querendo imprimir no outro palavras, histórias e imagens do seu próprio universo. Como se agora, maduros, pudéssemos proporcionar um ao outro tudo o que conquistamos ao longo de nossas vidas. Como se, em oferenda numa grande mesa, despejássemos todas essas coisas e disséssemos: “Eis o que sou!” E assim também, nos despojando de tudo isso, deixamos para trás o passado, e fomos desenhando no ar e no chão apenas a paixão e a alegria de estarmos juntos e dentro do presente. O futuro sendo esboçado a cada passo pelo movimento daquilo que eu te ensinei a chamar de “saudade”...

sábado, 22 de agosto de 2009

A carta que eu lhe escreveria

... e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço.
(Lavoura arcaica, Raduan Nassar)



Um dia, quase roguei aos céus para que me devolvessem as palavras adornadas com que alegrei seus dias monótonos. (Vasos com que enfeitei sua sala de estudos e seu quarto de medos.) Mas tudo isso me foi interditado. Estive muda: aos berros. Você se surpreenderia com minha voz ininteligível. Lembra-se dos parágrafos organizados, das linhas sólidas do meu pensamento? Vasos quebrados. Flores espatifadas. Elas, que nasceram tão displicentemente, regadas pelo meu resto de vaidade. Eu quis ver sua mão protagonizando essa catástrofe. Eu quis ver qualquer gesto seu que me redimisse de um erro de mão única. Apostrofei-lhe: “Vamos, comungue comigo! Estraçalhe a cerâmica modelada por minhas mãos!” Mas isso também me foi negado. Você se calou.

Pretendi fazer um trabalho alquímico. Eu quis transformar argila numa linguagem nova que lhe trouxesse de volta à vida. Você: o próprio silêncio. A mim, toda a culpa pelo húmus fértil, repleto de sementes de confusão. Qualquer flor que viesse desse húmus não resistiria à esterilidade de vasos talhados com sadismo e habilidade. Foi com ela, a habilidade, que lhe confundi. Você não viu que as curvas de minhas peças imitavam a silhueta da volúpia?

Só que agora estive andando pelo deserto. Acho que aprendi a matéria do silêncio. Você acreditaria que não dou mais uivos de loba? Que poderia usar uma página de areia para lhe fazer uma carta de brisa calma e benfazeja? Acreditaria que sei fazer vasos leves, para simular a inexistência do que lhe causava medo? Já posso ouvir sua reprimenda: “Por favor, largue o artesanato! Há coisas mais úteis a se fazer.” Você não teria pudor ao discorrer sobre as vantagens das coisas úteis... Mas já passou o tempo das tempestades. Fui ao deserto. Lá, não se plantam flores.

Purifiquei-me de toda a umidade. Agora consigo manejar o pó arenoso sem contaminá-lo. Eu, que não reconhecia as propriedades lingüísticas da areia. Quanta higiene nas minhas novas palavras! Quanta gratuidade nos grãos efêmeros que lanço ao vento! Eu, que só enxergava do vento a sua tirania, que quase me ressenti quando você disse que não sabia construir vasos.

Você não queria sujar no barro as mãos que conservava cautelosas.

sábado, 15 de agosto de 2009

Palavras inscritas em pedras




As palavras não deveriam existir. Por que não se contentou com o sonho, a precária imagem silenciosa? Para que jogar tudo num universo perigoso de frases inexatas? Esperaria ela aquela tarde cinzenta com gosto de morte? Adivinharia ver encostas vastas e tristes? Ter o corpo retorcido por rios internos ainda tão quentes? Sonhou algum dia a volta lenta deslizando sobre uma estrada de atmosfera fumacenta e sufocante? Naquela volta, ela por um momento se surpreendia com sua nova descoberta. Mas tudo vinha ardendo em seu sangue, numa realidade que saltava em jorro e não podia ser ignorada. Onde estivera nos últimos dias? Em sonho, supunha. Fora um sonho aquela noite mágica em que teve que derramar, pela primeira vez com humildade e candura, o que tinha por dentro. Aliás, ela sentia, presumia: o que estava dentro de si havia sido tudo. Fora a força destas águas internas que por muito tempo a levou a fazer inscrições em pedras. Ela estava pasma: em pedras! Como pudera? Não deveria ter consciência de que palavras são feitas para o vento? Pedras: tudo o que a partir de agora passava a constituir seu ser. As águas o iam esvaziando, e ele ia endurecendo e se tornando encostas desabitadas de vegetação sombria. Ela sentia que sua tristeza vinha justamente das pedras que pressentia por baixo de toda aquela cinza. E era duro para seus olhos ter de se acostumar à nova realidade que se apresentava à sua frente. Retorcia-se para ver um vale que já estava ficando para trás: era muito breve seu olhar sobre aquele relevo em forma de garganta. (Teria piedade de si mesma ao ver a própria representação dos gritos silenciosos, dos rasgos, que neste momento a consumiam?) Mas lembrava-se, com uma quase certeza, de que usou palavras calmas ao final. Palavras sinceras, já há muito óbvias para ela. Palavras que fluíam realmente cândidas, como as de uma criança. Sabia que durante aqueles minutos penumbrosos fora ela mesma. Orgulhava-se disso. As palavras saíram de um modo tão liso que a surpreenderam. Não se arrependeu daquelas sílabas sonoras e cheias de significado. Na verdade, tudo antes daquele momento é que realmente havia sido noite. Não deveria ter desconfiado da carícia fria do vento que envolvia aquela mesma estrada, na noite em que fizera com ousadia o caminho inverso ao que estava fazendo agora? Nos breves momentos de medo, nessa noite na estrada, o que a levou a acreditar que houvesse vida por baixo de toda aquela escuridão foi a lembrança de palavras que colheu do vento e inscreveu com displicência nas pedras de sua alma.
Ela não queria de palavras-vento o relevo de seu amor.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A sarjeta do medo

E disse Deus: Haja luz. E houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
(Gênesis, 1:3, 4)




A cozinha estava impregnada de cheiro de alho. Enquanto mexia o alimento na panela, ele imaginava que aquele era o cheiro do seu corpo. E pensava no tempo em que não mais estaria neste mundo. Certamente, o céu não cheiraria a alho, e ele não mais cozinharia. Sempre acreditou em banquetes fartos, servidos num jardim imenso, onde todos os que mereciam estar ali eram honrados como convivas. Nunca imaginou que o próprio Deus pudesse participar desses banquetes. Difícil pensar que o Criador necessitasse de comida e vinho. Na juventude, quando se embebedava com os amigos, tinha muita vergonha d’Ele, que indubitavelmente o assistia lá de cima. “Ele deve estar encolerizado com meu passo trôpego.” Não, Deus não deveria suportar a imagem de um homem comendo ou bebendo. Era por isso que sua oração antes das refeições nunca era de agradecimento, mas sempre de perdão.

“Perdão pelo meu estado”, disse-lhe com naturalidade a moça do quarto vizinho. Ele voltava para fazer o almoço e, vendo a porta do quarto dela entreaberta, enfiou a cabeça no recinto sem nenhuma cerimônia. A vizinha estava deitada com os pés na direção da porta, mas parecia estar acordada havia muito tempo. Mesmo constrangido por vê-la apenas de calcinha e sutiã, ele desabafou: “Sabe aquele amigo que joga damas comigo às sextas?” Ela respondeu com a mesma sonolência de seu corpo sinuoso e cheirando a alfazema: “Sei sim...” E ele: “Está para morrer”. Como tivessem sido insuficientes estas palavras para a compaixão dela, pois sequer se levantou para atendê-lo, ele foi acrescentando: “Há três dias, ele vem sentindo muitas dores, e hoje teve que ir para um hospital.” Ela questionou com calma, sem deixar sua posição de descanso: “Mas, será que o caso é grave mesmo? Temos que esperar o parecer do médico, não?” Ele, olhar voltado para o pedaço de céu nublado com que a janela iluminava o leito da moça: “Sei que não volta mais. Ontem, fui visitá-lo e ele me disse que só podia ser um mal sem cura. É sempre assim com os que se vão: eles pressentem quando chega o fim...” Ela abriu um sorriso tão claro e benevolente quanto a imagem de seu corpo seminu: “Ah, Seu Jânio, mas ninguém sabe dessas coisas, não.”

“Então, ninguém sabe de nada? Não é possível! Deve haver uma certeza, um propósito para as coisas injustas deste mundo...” Foi com essas palavras que, na adolescência, quando ainda morava com os pais no campo, impugnou o maior sabedor daquelas cercanias, um tio seu, contador de histórias, homem que aprendeu a ler sozinho. Naquela prosa de agricultores em começo de noite, banho tomado e roupa limpa, eles se aporrinhavam com um assassinato acontecido na cidade próxima. Um sujeito matou a mulher com uma foice e atirou os pedaços do corpo da vítima no rio. “Como Deus pode permitir uma injustiça dessas, tio?” E o tio sentia que naquela noite voltaria para casa cabisbaixo, remoendo as dúvidas que o sobrinho colocava sobre suas certezas. “Talvez Deus saiba o que faz, filho. Ele conhece o mistério por trás de todas as coisas...” “Então, é verdade o ditado, tio, que uma folha não cai da árvore sem a ordem de Deus?”

“Tudo só acontece pela vontade de Deus, meu amigo. E Ele quer o bem, quer que você permaneça entre nós...”, foi o que respondeu ao amigo doente na noite em que foi visitá-lo. Ele não tinha certeza do que seria esse bem de Deus que está por trás de tudo, não sabia direito o que estava dizendo, mas acreditava no efeito psicológico que certas palavras podem causar a um moribundo. Não lembrava quantas vezes tinha usado esta mesma frase nos últimos anos, para amigos que hoje habitavam o Vale da Eternidade, o cemitério daquela parte da cidade. A morte parecia mais próxima e cruel quando atingia algum colega de damas ou de sueca. Os amigos do jogo são sempre os mais fiéis. E agora, diante dele, convalescia justamente o que sempre lhe emprestava dinheiro para as urgências. O João nunca lhe negou verba para os remédios, para cobrir os cheques calções de consultas e exames. “Mas sempre tem aquela vez em que a doença chega para matar”, era o João se despedindo, sem muita benevolência consigo próprio. “Afinal, dizem que este mundo não deve durar para sempre.”

“Mas, então, onde fica o inferno?”. Era um dia chuvoso. Do outro lado da rua da pensão, ele e a moça do quarto vizinho estavam presos embaixo da marquise de uma loja. A conversa era sobre guerra e política, e permaneceria em tom banal, se ele, olhos vagos para a enxurrada que entrava pelo bueiro da esquina, não questionasse: “Qual o destino desses grandes ditadores que fazem as guerras? É certo: quando morrerem, vão todos eles para o inferno.” A voz da moça vibrou firme, hálito quente que ele sentia bater no seu pescoço, som que fazia cessar o barulho da chuva: “Não há vida depois dessa, seu Jânio.” (Quem era ela? De que outro mundo viria sua voz?) “Mas deve haver um castigo para os maus”, ele disse isso enquanto se voltava para ela. Foi neste momento que percebeu pela primeira vez a beleza da moça, suas mãos perfeitas e temerosas protegendo da umidade fria um corpo frágil e perecível de mulher. Era de dentro daquele ser tão gracioso que emergia, em voz estranha, a sentença: “Há um castigo para todos: a morte”.

“O castigo que vem para todos me acometeu!”, foi o que pensou na semana passada, desesperado com o diagnóstico do câncer. O médico tentava ser cauteloso, para afetar otimismo. Mas apenas a morte, com sua voz de fantasma, martelava a cabeça do paciente. Estava aturdido ao sair do consultório. Esqueceu o ônibus. Lembrou da moça. E caminhava sem rumo. “Ela riria do meu passo trôpego.” A moça era a única esperança que ele tinha na generosidade de Deus. Sabia onde ela trabalhava. Era para lá que se dirigia assim, ebriamente. Permaneceu algumas horas na calçada oposta à porta do paraíso, uma porta de vidro com o emblema da justiça. Era atrás dessa porta que a verdade de Deus estava, entre papéis e computadores. Mas ele não queria estar naquela calçada às seis horas, quando ela, passo certo e olhar resignado, atravessaria a rua e, cega, atropelaria com pernas de vedete o bêbado castigado pela Divina Providência.