quinta-feira, 23 de julho de 2009

A sarjeta do medo

E disse Deus: Haja luz. E houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
(Gênesis, 1:3, 4)




A cozinha estava impregnada de cheiro de alho. Enquanto mexia o alimento na panela, ele imaginava que aquele era o cheiro do seu corpo. E pensava no tempo em que não mais estaria neste mundo. Certamente, o céu não cheiraria a alho, e ele não mais cozinharia. Sempre acreditou em banquetes fartos, servidos num jardim imenso, onde todos os que mereciam estar ali eram honrados como convivas. Nunca imaginou que o próprio Deus pudesse participar desses banquetes. Difícil pensar que o Criador necessitasse de comida e vinho. Na juventude, quando se embebedava com os amigos, tinha muita vergonha d’Ele, que indubitavelmente o assistia lá de cima. “Ele deve estar encolerizado com meu passo trôpego.” Não, Deus não deveria suportar a imagem de um homem comendo ou bebendo. Era por isso que sua oração antes das refeições nunca era de agradecimento, mas sempre de perdão.

“Perdão pelo meu estado”, disse-lhe com naturalidade a moça do quarto vizinho. Ele voltava para fazer o almoço e, vendo a porta do quarto dela entreaberta, enfiou a cabeça no recinto sem nenhuma cerimônia. A vizinha estava deitada com os pés na direção da porta, mas parecia estar acordada havia muito tempo. Mesmo constrangido por vê-la apenas de calcinha e sutiã, ele desabafou: “Sabe aquele amigo que joga damas comigo às sextas?” Ela respondeu com a mesma sonolência de seu corpo sinuoso e cheirando a alfazema: “Sei sim...” E ele: “Está para morrer”. Como tivessem sido insuficientes estas palavras para a compaixão dela, pois sequer se levantou para atendê-lo, ele foi acrescentando: “Há três dias, ele vem sentindo muitas dores, e hoje teve que ir para um hospital.” Ela questionou com calma, sem deixar sua posição de descanso: “Mas, será que o caso é grave mesmo? Temos que esperar o parecer do médico, não?” Ele, olhar voltado para o pedaço de céu nublado com que a janela iluminava o leito da moça: “Sei que não volta mais. Ontem, fui visitá-lo e ele me disse que só podia ser um mal sem cura. É sempre assim com os que se vão: eles pressentem quando chega o fim...” Ela abriu um sorriso tão claro e benevolente quanto a imagem de seu corpo seminu: “Ah, Seu Jânio, mas ninguém sabe dessas coisas, não.”

“Então, ninguém sabe de nada? Não é possível! Deve haver uma certeza, um propósito para as coisas injustas deste mundo...” Foi com essas palavras que, na adolescência, quando ainda morava com os pais no campo, impugnou o maior sabedor daquelas cercanias, um tio seu, contador de histórias, homem que aprendeu a ler sozinho. Naquela prosa de agricultores em começo de noite, banho tomado e roupa limpa, eles se aporrinhavam com um assassinato acontecido na cidade próxima. Um sujeito matou a mulher com uma foice e atirou os pedaços do corpo da vítima no rio. “Como Deus pode permitir uma injustiça dessas, tio?” E o tio sentia que naquela noite voltaria para casa cabisbaixo, remoendo as dúvidas que o sobrinho colocava sobre suas certezas. “Talvez Deus saiba o que faz, filho. Ele conhece o mistério por trás de todas as coisas...” “Então, é verdade o ditado, tio, que uma folha não cai da árvore sem a ordem de Deus?”

“Tudo só acontece pela vontade de Deus, meu amigo. E Ele quer o bem, quer que você permaneça entre nós...”, foi o que respondeu ao amigo doente na noite em que foi visitá-lo. Ele não tinha certeza do que seria esse bem de Deus que está por trás de tudo, não sabia direito o que estava dizendo, mas acreditava no efeito psicológico que certas palavras podem causar a um moribundo. Não lembrava quantas vezes tinha usado esta mesma frase nos últimos anos, para amigos que hoje habitavam o Vale da Eternidade, o cemitério daquela parte da cidade. A morte parecia mais próxima e cruel quando atingia algum colega de damas ou de sueca. Os amigos do jogo são sempre os mais fiéis. E agora, diante dele, convalescia justamente o que sempre lhe emprestava dinheiro para as urgências. O João nunca lhe negou verba para os remédios, para cobrir os cheques calções de consultas e exames. “Mas sempre tem aquela vez em que a doença chega para matar”, era o João se despedindo, sem muita benevolência consigo próprio. “Afinal, dizem que este mundo não deve durar para sempre.”

“Mas, então, onde fica o inferno?”. Era um dia chuvoso. Do outro lado da rua da pensão, ele e a moça do quarto vizinho estavam presos embaixo da marquise de uma loja. A conversa era sobre guerra e política, e permaneceria em tom banal, se ele, olhos vagos para a enxurrada que entrava pelo bueiro da esquina, não questionasse: “Qual o destino desses grandes ditadores que fazem as guerras? É certo: quando morrerem, vão todos eles para o inferno.” A voz da moça vibrou firme, hálito quente que ele sentia bater no seu pescoço, som que fazia cessar o barulho da chuva: “Não há vida depois dessa, seu Jânio.” (Quem era ela? De que outro mundo viria sua voz?) “Mas deve haver um castigo para os maus”, ele disse isso enquanto se voltava para ela. Foi neste momento que percebeu pela primeira vez a beleza da moça, suas mãos perfeitas e temerosas protegendo da umidade fria um corpo frágil e perecível de mulher. Era de dentro daquele ser tão gracioso que emergia, em voz estranha, a sentença: “Há um castigo para todos: a morte”.

“O castigo que vem para todos me acometeu!”, foi o que pensou na semana passada, desesperado com o diagnóstico do câncer. O médico tentava ser cauteloso, para afetar otimismo. Mas apenas a morte, com sua voz de fantasma, martelava a cabeça do paciente. Estava aturdido ao sair do consultório. Esqueceu o ônibus. Lembrou da moça. E caminhava sem rumo. “Ela riria do meu passo trôpego.” A moça era a única esperança que ele tinha na generosidade de Deus. Sabia onde ela trabalhava. Era para lá que se dirigia assim, ebriamente. Permaneceu algumas horas na calçada oposta à porta do paraíso, uma porta de vidro com o emblema da justiça. Era atrás dessa porta que a verdade de Deus estava, entre papéis e computadores. Mas ele não queria estar naquela calçada às seis horas, quando ela, passo certo e olhar resignado, atravessaria a rua e, cega, atropelaria com pernas de vedete o bêbado castigado pela Divina Providência.

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