quinta-feira, 23 de julho de 2009

A travessia de Rafael

Toda a sua vida tinha consistido num esforço calculado de simplificação. Ele andava objetivo pelo corredor: pasta à mão, passos precisos, numa velocidade moderada. Rumo certo: a sala 34. Ninguém mais naquele prédio de universidade sabia transpor aqueles quarenta metros tão positivamente. Nenhum obstáculo o detinha. Na verdade, ele eliminava qualquer possibilidade de obstáculo. Pessoa nenhuma teria coragem de interromper seu caminhar cego de atleta naquela passarela que ele pisava com destreza. Como se tivesse nascido para aquele momento. Todas as manhãs, exatamente às sete e meia, a vida por ali parava seu curso normal. Como se uma câmera lenta filmasse o seu desfile. Tudo nele contribuía para aquele ritmo estável: a calça bege feita para lhe garantir conforto, os sapatos de sola macia, a cor vermelha de sua camisa favorita. Como se levasse uma mensagem veemente do sol para aquele recinto sóbrio de chão especular e paredes impassíveis.

Ele era uma chama silenciosa. Era sutil e sabia mascarar sua periculosidade. Seus mocassins galgavam o chão sem arranhá-lo. Ele foi feito para andar sobre o espelho. Como se flutuasse na água. E se alguém fosse investigar por que ele nunca afundara, no fim iria descobrir: ele nada via. Ele era uma máquina.

Mas isso era durante o minuto da travessia.

Enquanto destrancava a porta da sala 34, ele se esforçava para recobrar sua identidade humana. Antes que a chave girasse as duas vezes necessárias para o acesso ao outro mundo, tinha que lembrar ao menos o próprio nome. Se isso não acontecesse, permaneceria morto. Porém, como temia a idéia de ficar eternamente no (auto)esquecimento, ele sempre conseguia: “Rafael”, o abre-te-sésamo pronunciado por sua consciência.

Na sala 34, ele era. Tinha vinte e dois anos, mas renascia todos os dias, ao abrir a porta. “Rafael”, como o verbo virgem de Deus no Gênesis.
Rafael tinha pouco tempo para saborear o oxigênio recém-soprado em seus pulmões. Precisava iniciar suas atividades de estagiário. Enquanto estivesse sozinho na sala, ele poderia acreditar que existia plenamente. Precisava estar com as próprias palavras para se sentir vivo. A linguagem dos outros era uma lança fatal contra seu peito suave de penugem dourada. Por isso, ele só existia quando estava sozinho.Quando chegavam seu orientador e seu colega de pesquisa, ele intensificava a assepsia de seu trabalho. Queria, com isso, se proteger das palavras. E, de fato, elas eram quase impotentes diante dos brancos longos dedos que tocavam hábeis o teclado do computador. Como se Rafael fosse uma continuação do equipamento. Mas ele ainda respirava, ainda pulsava. Deveria viver por mais algumas horas.Ele era uma bomba. E não sabia que era inútil a sua luta contra a contagem regressiva do relógio.



Era um dia comum de travessia. Rafael, vulto inflamável através do corredor, fora interceptado por Lúcia: bela mão contra seu tórax em alvoroço. Ela trazia o nome dele nos lábios. E o sopro da Criação, naquele dia fatal, aconteceu ali mesmo, vinte metros antes de ele atingir seu destino.
Como se ela, olhar em combustão, lhe incendiasse o mundo.

2 comentários:

  1. Hot!
    O andar de Rafael ficou como uma imagem em câmera lenta na minha cabeça, todos os detalhes calculados por vc, Pat. Quase cheguei a ouvir o barulho da chave na porta!
    Sou sua fã!
    beijão

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  2. Sabe, lembrei-me dos contos de Murilo Rubião,
    principalmente o "A armadilha", que armadilha
    ...heim!!!As palavras são armadilha.

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