sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Tango

Para uma grande amiga
que faz de sua vida uma linda história de amor.


Eu já havia aprendido a arte da guerra. Eu já sabia lidar com a dor. Eu já sabia trilhar o caminho da alegria. Eu já havia entendido que a vida é este fluir incessante que pulsa aqui dentro de mim e que move tudo. Eu já tinha o dom e a arte de salvar almas perdidas, como quem faz vicejar de um monturo um inesperado canteiro de flores. Eu não tinha mais pudor em reconhecer minha beleza e em expô-la nas ruas ou dentro de casa. Eu já sabia dançar e rodopiar ao som dos pássaros, sob o sol da manhã. Tudo isso eu já sabia quando te encontrei. E quando te vi tão perto, eu quis, considerando a acuidade do momento, deixar em ti as minhas marcas. Mas tu foste, aos poucos, revelando teu próprio arsenal. Então, eu vi que dessa batalha eu também não sairia incólume.

Foi no meu território que nos encontramos dessa vez. Traduzir-me foi para ti assunto de primeira ordem, tão grave e importante quanto aprender a desbravar a metrópole labiríntica em que eu te recebi. Para isso, não te custou ler livros de psicanálise e nem estudar a língua do meu país, numa preparação de quem pretende desvendar códigos de guerra. E, assim, foste penetrando meu mundo de dimensões continentais, costa e selva demarcando com tuas bandeiras...

Eu guardava para ti um sertão. Rios perdidos dentro de matas inóspitas com que eu queria burlar a segurança de teus cálculos precisos. Foi só com belezas que eu quis te seduzir. Em recompensa à tua bravura nos dias em que enfrentaste minha cidade fria de pedra, dei-te o langor de Copacabana e um mar de fantasias. Mas tu, meu lindo anjo estrangeiro, deste ao meu Carnaval a técnica e o rigor de um tango. E eu, que pensava saber tudo o que precisava para viver e ser feliz; eu vi que agora tinha de aprender o ritmo do teu passo.

Tu e eu: ambos versados em matéria de liberdade... Somente um tango poderia nos enlaçar sem deixar que perdêssemos na dança nossa altivez e dignidade. Olhos nos olhos: um querendo imprimir no outro palavras, histórias e imagens do seu próprio universo. Como se agora, maduros, pudéssemos proporcionar um ao outro tudo o que conquistamos ao longo de nossas vidas. Como se, em oferenda numa grande mesa, despejássemos todas essas coisas e disséssemos: “Eis o que sou!” E assim também, nos despojando de tudo isso, deixamos para trás o passado, e fomos desenhando no ar e no chão apenas a paixão e a alegria de estarmos juntos e dentro do presente. O futuro sendo esboçado a cada passo pelo movimento daquilo que eu te ensinei a chamar de “saudade”...

sábado, 22 de agosto de 2009

A carta que eu lhe escreveria

... e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço.
(Lavoura arcaica, Raduan Nassar)



Um dia, quase roguei aos céus para que me devolvessem as palavras adornadas com que alegrei seus dias monótonos. (Vasos com que enfeitei sua sala de estudos e seu quarto de medos.) Mas tudo isso me foi interditado. Estive muda: aos berros. Você se surpreenderia com minha voz ininteligível. Lembra-se dos parágrafos organizados, das linhas sólidas do meu pensamento? Vasos quebrados. Flores espatifadas. Elas, que nasceram tão displicentemente, regadas pelo meu resto de vaidade. Eu quis ver sua mão protagonizando essa catástrofe. Eu quis ver qualquer gesto seu que me redimisse de um erro de mão única. Apostrofei-lhe: “Vamos, comungue comigo! Estraçalhe a cerâmica modelada por minhas mãos!” Mas isso também me foi negado. Você se calou.

Pretendi fazer um trabalho alquímico. Eu quis transformar argila numa linguagem nova que lhe trouxesse de volta à vida. Você: o próprio silêncio. A mim, toda a culpa pelo húmus fértil, repleto de sementes de confusão. Qualquer flor que viesse desse húmus não resistiria à esterilidade de vasos talhados com sadismo e habilidade. Foi com ela, a habilidade, que lhe confundi. Você não viu que as curvas de minhas peças imitavam a silhueta da volúpia?

Só que agora estive andando pelo deserto. Acho que aprendi a matéria do silêncio. Você acreditaria que não dou mais uivos de loba? Que poderia usar uma página de areia para lhe fazer uma carta de brisa calma e benfazeja? Acreditaria que sei fazer vasos leves, para simular a inexistência do que lhe causava medo? Já posso ouvir sua reprimenda: “Por favor, largue o artesanato! Há coisas mais úteis a se fazer.” Você não teria pudor ao discorrer sobre as vantagens das coisas úteis... Mas já passou o tempo das tempestades. Fui ao deserto. Lá, não se plantam flores.

Purifiquei-me de toda a umidade. Agora consigo manejar o pó arenoso sem contaminá-lo. Eu, que não reconhecia as propriedades lingüísticas da areia. Quanta higiene nas minhas novas palavras! Quanta gratuidade nos grãos efêmeros que lanço ao vento! Eu, que só enxergava do vento a sua tirania, que quase me ressenti quando você disse que não sabia construir vasos.

Você não queria sujar no barro as mãos que conservava cautelosas.

sábado, 15 de agosto de 2009

Palavras inscritas em pedras




As palavras não deveriam existir. Por que não se contentou com o sonho, a precária imagem silenciosa? Para que jogar tudo num universo perigoso de frases inexatas? Esperaria ela aquela tarde cinzenta com gosto de morte? Adivinharia ver encostas vastas e tristes? Ter o corpo retorcido por rios internos ainda tão quentes? Sonhou algum dia a volta lenta deslizando sobre uma estrada de atmosfera fumacenta e sufocante? Naquela volta, ela por um momento se surpreendia com sua nova descoberta. Mas tudo vinha ardendo em seu sangue, numa realidade que saltava em jorro e não podia ser ignorada. Onde estivera nos últimos dias? Em sonho, supunha. Fora um sonho aquela noite mágica em que teve que derramar, pela primeira vez com humildade e candura, o que tinha por dentro. Aliás, ela sentia, presumia: o que estava dentro de si havia sido tudo. Fora a força destas águas internas que por muito tempo a levou a fazer inscrições em pedras. Ela estava pasma: em pedras! Como pudera? Não deveria ter consciência de que palavras são feitas para o vento? Pedras: tudo o que a partir de agora passava a constituir seu ser. As águas o iam esvaziando, e ele ia endurecendo e se tornando encostas desabitadas de vegetação sombria. Ela sentia que sua tristeza vinha justamente das pedras que pressentia por baixo de toda aquela cinza. E era duro para seus olhos ter de se acostumar à nova realidade que se apresentava à sua frente. Retorcia-se para ver um vale que já estava ficando para trás: era muito breve seu olhar sobre aquele relevo em forma de garganta. (Teria piedade de si mesma ao ver a própria representação dos gritos silenciosos, dos rasgos, que neste momento a consumiam?) Mas lembrava-se, com uma quase certeza, de que usou palavras calmas ao final. Palavras sinceras, já há muito óbvias para ela. Palavras que fluíam realmente cândidas, como as de uma criança. Sabia que durante aqueles minutos penumbrosos fora ela mesma. Orgulhava-se disso. As palavras saíram de um modo tão liso que a surpreenderam. Não se arrependeu daquelas sílabas sonoras e cheias de significado. Na verdade, tudo antes daquele momento é que realmente havia sido noite. Não deveria ter desconfiado da carícia fria do vento que envolvia aquela mesma estrada, na noite em que fizera com ousadia o caminho inverso ao que estava fazendo agora? Nos breves momentos de medo, nessa noite na estrada, o que a levou a acreditar que houvesse vida por baixo de toda aquela escuridão foi a lembrança de palavras que colheu do vento e inscreveu com displicência nas pedras de sua alma.
Ela não queria de palavras-vento o relevo de seu amor.