sábado, 22 de agosto de 2009

A carta que eu lhe escreveria

... e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço.
(Lavoura arcaica, Raduan Nassar)



Um dia, quase roguei aos céus para que me devolvessem as palavras adornadas com que alegrei seus dias monótonos. (Vasos com que enfeitei sua sala de estudos e seu quarto de medos.) Mas tudo isso me foi interditado. Estive muda: aos berros. Você se surpreenderia com minha voz ininteligível. Lembra-se dos parágrafos organizados, das linhas sólidas do meu pensamento? Vasos quebrados. Flores espatifadas. Elas, que nasceram tão displicentemente, regadas pelo meu resto de vaidade. Eu quis ver sua mão protagonizando essa catástrofe. Eu quis ver qualquer gesto seu que me redimisse de um erro de mão única. Apostrofei-lhe: “Vamos, comungue comigo! Estraçalhe a cerâmica modelada por minhas mãos!” Mas isso também me foi negado. Você se calou.

Pretendi fazer um trabalho alquímico. Eu quis transformar argila numa linguagem nova que lhe trouxesse de volta à vida. Você: o próprio silêncio. A mim, toda a culpa pelo húmus fértil, repleto de sementes de confusão. Qualquer flor que viesse desse húmus não resistiria à esterilidade de vasos talhados com sadismo e habilidade. Foi com ela, a habilidade, que lhe confundi. Você não viu que as curvas de minhas peças imitavam a silhueta da volúpia?

Só que agora estive andando pelo deserto. Acho que aprendi a matéria do silêncio. Você acreditaria que não dou mais uivos de loba? Que poderia usar uma página de areia para lhe fazer uma carta de brisa calma e benfazeja? Acreditaria que sei fazer vasos leves, para simular a inexistência do que lhe causava medo? Já posso ouvir sua reprimenda: “Por favor, largue o artesanato! Há coisas mais úteis a se fazer.” Você não teria pudor ao discorrer sobre as vantagens das coisas úteis... Mas já passou o tempo das tempestades. Fui ao deserto. Lá, não se plantam flores.

Purifiquei-me de toda a umidade. Agora consigo manejar o pó arenoso sem contaminá-lo. Eu, que não reconhecia as propriedades lingüísticas da areia. Quanta higiene nas minhas novas palavras! Quanta gratuidade nos grãos efêmeros que lanço ao vento! Eu, que só enxergava do vento a sua tirania, que quase me ressenti quando você disse que não sabia construir vasos.

Você não queria sujar no barro as mãos que conservava cautelosas.

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